O Fim de Todas as Coisas

Douglas acordou com a chuva batendo na janela, ele se espreguiçou embaixo da coberta puída se recusando a abrir os olhos por mais alguns minutos, tinha receio de ter acordado muito antes do despertador de novo e ser tarde demais para voltar a dormir.

Ele esperou por alguns minutos quando a introdução inconfundível de Thunderstruck começou a tocar no celular, conformado ele chutou a coberta para o chão escorregou para fora da cama, sem muito animo para começar aquela segunda-feira feira chuvosa, Douglas se arrastou até a cozinha e começou a preparar o café.

Enquanto o bule esquentava com a água ele passou os olhos por sua quitinete, o pequeno apartamento no centro de São Paulo era seu lar havia dois anos, não era um primor, mas, era o que seu salário de estagiário podia pagar e ainda assim ainda contava com a ajuda da mãe para complementar a renda de vez em quando.

Ele respirou fundo, de certa forma decepcionado consigo mesmo, havia prometido para si que conseguiria se sustentar sozinho, não queria colocar o peso de sustentar um filho em outro estado nas costas de sua mãe, mas havia dois anos que estava empacado no mesmo emprego sem chance de efetivação e com o tempo do contrato de estágio vencendo, precisava logo arranjar algo ou teria que desistir da faculdade e voltar para o interior.

Soltando um suspiro ele deixou a chaleira no fogo e foi passar uma água rápida no corpo, repetindo seu ritual de todas os dias e em torno de meia hora estava pronto para sair para o trabalho, a chuva continuava lá fora sem sinal de trégua e Douglas lamentou ter esquecido seu guarda-chuva no ônibus umas semanas atrás.

Tentando se animar um pouco, Douglas se preparou para encarar aquela chuva e saiu do apartamento prometendo a si mesmo que quando chegasse a noite iria fazer aquela faxina que estava enrolando.

A primeira coisa que notou de estranho na rua foi o silêncio, morando no centro não era incomum que logo cedo as ruas estivessem cheias, alguma obra sendo realizada, pessoas indo e vindo e o som inconfundível dos carros, enfim, toda aquela cacofonia que fazia de São Paulo, São Paulo, Douglas tentou se lembrar se era algum feriado ou algo do tipo, mas, não lembrando de nada em especifico deu de ombros e seguiu seu caminho em direção ao metrô.

Enquanto caminhava distraidamente pela rua, com o olhar focado no chão para evitar a água da chuva, Douglas trombou em uma pessoa, ele se virou para pedir desculpas, mas, quando levantou o rosto para ver em quem tinha trombado seu coração parou por um segundo, era uma mulher, e não que fosse linda e deslumbrante, era uma mulher comum até, o que fez o coração de Douglas parar por um segundo foi o fato dela estar parada, completamente parada no meio de um passo, ela nem sequer se moveu após a trombada, Douglas olhou ao redor rapidamente pela primeira vez no dia, todos estavam parados, os carros, pombos em meio ao voo, as gotas da chuva, era como se ele fosse a única pessoa capaz de fazer movimentos, como se o tempo houvesse parado para todos os outros.

Assustado, nervoso, suando frio, Douglas pega seu celular, o visor mostrava sem dúvida alguma 07:07, o que era impossível pois foi essa a hora que havia saído de casa e já estava caminhando a uns bons dez minutos. Cada vez mais nervoso Douglas resolve voltar para casa, aquela anomalia temporal, ou que quer que fosse poderia esperar, ele se prepara para iniciar uma corrida desenfreada, mas, mesmo antes de dar o primeiro passa ele percebe o vulto enorme olhando para ele a menos de um metro dele.

Douglas encara o vulto tomado de uma certa curiosidade, a figura é alta, passando dos dois metros de altura, completamente vestida de preto, dos pés à cabeça, um capuz cobria seu rosto e nada podia se ver por baixo dele, apenas a impressão de uma vastidão imensa na escuridão, Douglas não sentiu medo, de certa foram, ele fora tomado por uma paz relaxante e uma necessidade de saber quem era aquele vulto.

– Quem é você? – Ele pergunta, surpreso com a sonoridade que sua voz toma no silêncio completo.

– Você sabe quem eu sou Douglas. – O vulto responde, sua voz é linda, calma, angélica e suave, Douglas se sente bem, como se aquela voz pudesse curar todo o mal do mundo, todas as coisas ruins que aconteceram com ele.

O mundo continua parado, exceto para os dois, Douglas se aproxima do vulto até pouco mais de apenas um passo os separarem.

– Você é a Morte? – Perguntou hesitante, o vulto confirma com um aceno de cabeça.

A Morte acenou com a mão para que ele o seguisse e Douglas pois se a caminhar atrás da Morte

As pessoas paradas ainda o incomodavam, bem como a água da chuva que batia em seu rosto quando andava.

A Morte o levou pelo centro da cidade, passaram e muito pela estação em que devia embarcar, não estavam com pressa nesse pequeno passeio particular.

– O que você é Douglas? – A Morte perguntou.

Douglas levou um susto, de novo aquela voz doce, tinha um efeito calmante, leve, lembrava a voz de seu pai e de sua mãe ao mesmo tempo, quando ele tinha pesadelos a noite e fugia para o quarto deles.

– Desculpe? Pode repetir? – Perguntou nervoso.

O vulto meneou a cabeça e se possuísse rosto visível teria dado um leve sorriso.

– O que você é Douglas? – Repetiu, ainda com aquela voz bela e mutável em tantos níveis que era difícil, para não dizer impossível, não se fascinar.

Douglas parou e pensou na pergunta, estavam no viaduto Santa Efigênia e Douglas lembrou das boas memórias que tinha ali.

A Morte esperava pacientemente na resposta ao seu lado, quase como uma grande estatua negra coberta de andrajos escuros.

– Não sei, eu sou eu, uma pessoa, não? – Respondeu Douglas – Você quer saber com o que eu trabalho?

A Morte não respondeu, apenas sinalizou para que ele continuasse o seguindo.

Após mais algum tempo andando eles chegaram na Praça da Sé, a essa hora tomada por mendigos ainda dormindo seu sono da madrugada e algumas poucas pessoas chegando aos seus empregos.

A Morte se aproximou de um dos mendigos, um homem com tão pouca roupa para aquele frio que Douglas sentiu pena só de olhar e se abraçou tentando manter o corpo quente.

A Morte tocou no homem de leve, quase como uma leve carícia pelo seu rosto, sem movimentos desnecessários ou excessos.

Douglas viu o rosto do homem relaxar quando o toque do vulto cessou e compreendeu de imediato e com certo terror.

– Vo-você o matou! – Disse exasperado.

A Morte confirmou com um aceno de cabeça enquanto tirava um caderno pequeno e muito usado de dentro das vestes e riscava alguma coisa.

O terror dominou Douglas, seu intuito era fugir, desesperadamente, ainda não era sua hora, era jovem, tinha planos, estudava e trabalhava, não usava drogas ou fumava, raramente bebia, pois, era um luxo que não podia se dar, por que justo ele tinha que morrer agora?

A Morte percebendo o estado de nervosismo do jovem guardou o caderno e se aproximou dele, naqueles passos flutuantes que só ela era capaz de dar, esticou a mão e fez a mesma caricia que havia feito no rosto do homem mais cedo.

Douglas se sentiu em paz, sua mente ainda estava aterrorizada, mas ao menos seus pensamentos voltaram a fluir.

– Eu morri? – Perguntou nervoso.

– Ainda não – respondeu a Morte com um tom divertido – Você está na lista, mas ainda não é sua hora.

Ela mostrou o caderno para Douglas e lá estava, Douglas Bengio, a data de hoje, e um grande espaço em branco ao lado, ele foi ver os outros nomes já riscados para ver se descobria o que era aquele espaço mas percebeu que não conseguia ler mais nada daquele caderno.

– O que é esse espaço em branco? – Perguntou curioso.

– Exatamente o que estou tentando descobrir. Vamos, me acompanhe.

A Morte o guiou pelas diversas ruas de São Paulo, sempre executando seu trabalho com precisão, calma, e de certa forma, tristeza.

Douglas perdeu a noção do tempo, seu relógio continuava parado como o resto do mundo e apesar de não se sentir qualquer tipo de cansaço físico e queria que aquilo terminasse o mais rápido possível.

– Por quanto tempo mais vamos fazer isso?

A Morte não conseguiu segurar a risada, novamente sobressaltando o jovem, uma risada divertida, genuína, daquelas que vem do fundo, da alma.

– Criança, não é como se eu pudesse tirar férias uma vez por ano!

– Não, digo sim, eu sei, mas, por que eu tenho que ir junto? Por que tenho que ver você matar todas essas pessoas? Essa tristeza toda! Quando o tempo voltar ao normal terão tantas famílias devastadas, tantas pessoas que morreram por nada…

– Criança, nenhuma pessoa morre por nada, as vezes a vida delas são encurtadas antes do tempo e não há nada que posso fazer para impedir, como vocês dizem mesmo? Não é minha alçada, acho que é isso. Não controlo o Destino, aquele traste, bem que eu queria, mas não podemos ter tudo o que queremos, não é?

A Morte deu uma pausa na sua explicação, estavam na entrada no Edifício Copan e Douglas perdeu um tempo olhando para o prédio com sua arquitetura característica e antes que pudesse voltar a falar a Morte o tomou pela mão e entrou com ele no antigo prédio.

Foram até o terraço da cobertura onde sentaram no parapeito enquanto a Morte continuava sua explicação.

– Todos nós morremos Douglas, faz parte da vida e não é nenhum segredo. Até eu um dia irei deixar esse manto, não, não sou a primeira Morte e tenho certeza de que não serei a última, até pensei que você pudesse ser meu sucessor, mas sucessores não aparecem na lista.

Douglas olhava para a cidade por cima, seus pensamentos estavam aéreos em sua mente e nada do que a Morte lhe dizia fazia sentido.

– Mas por que eu estou na lista? – Perguntou chorando, não queria morrer, não estava pronto. A Morte pegou o caderno e olhou novamente, não havia mais espaço em branco, todas as informações estavam completas, causa, horário e lugar, tudo estava lá.

– Porque você quer… – respondeu a Morte mostrando novamente o caderno surrado, e lá estava, tão claro como o dia, ao lado da data e do horário que seria dali a uma hora, suicídio.

– Suicí… suicídio? Eu vou me matar? Mas… por que? Eu não quero morrer ainda? Daqui a uma hora? Só tenho mais uma hora de vida? Não vou poder fazer nada para impedir?

Douglas estava exasperado, ficou de pé, chutou o ar revoltado com seu fim, gritou a plenos pulmões de ódio, respirando fundo olhou para o lado para tentar implorar pela sua vida, mas não encontrou ninguém, o som da cidade em movimento ocupou seu ouvido e se surpreender ao ver os carros e pessoas lá embaixo como se nada tivesse acontecido.

– E-eu escapei? Eu consegui? – Disse mais com um suspiro de alívio – Não vou morrer, não hoje, consegui, me livrei d’A Morte!

– Não tão cedo criança… – Escutou a voz as suas costas, a leve pressão em seus ombros e sentiu seu corpo despencando em direção ao fim.

Ao fim de todas as coisas.